Reflexão sobre a escrita diarística
Num diário, a escrita está por dentro dos acontecimentos, na narração literária são os acontecimentos que estão por dentro da escrita.
A escrita diarística está suspensa do tempo, depende dele, é ele que a domina, tal como é a lógica da vida que domina o engendramento dos factos e, por dentro destes, a escrita. A escrita diarística não controla os factos, antes voga ao sabor deles. Toda a expectativa é feita pelo tempo em suspenso, evoluindo de dia para dia, de acordo com uma lógica do real que os engrena e os engendra numa sequência inexoravelmente cronológica sem que o sujeito escrevente, também actor, os possa controlar a bel-prazer, pois está dependente do destino imposto pela máquina externa do real.
Na escrita ficcional é a linguagem que cria os factos, permanecendo por fora deles: envolve-os, doseia-os, controla-os (eles não são “dados” consumados mas construíveis), toma-lhes o freio do tempo, enreda-os, inverte-os e fá-los derivar por onde os ardis da escrita os decide comandar; o suspense não é externo, é construído sabiamente pelo narrador mediante um doseamento técnico, mais do que propriamente pelo impoder de controlar o tempo e as engrenagens da lógica do real.
É por este peso referencial que a escrita diarística se demarca claramente da escrita literária ou mesmo da escrita memorialista.
E é este também o segredo e a sedução da tele-novela. É a lógica sincopada da telenovela que parece sustentar o seu sucesso público: o seu poder espantoso de suspender um país inteiro à mesma hora, dia após dia, ao longo dos meses, advém de ela mesma se ir construindo dia a dia, como um verdadeiro duplo da vida real (um duplo imaginário da vida real). Também aí o tempo é um factor indomável, tal como na vida, onde tudo pára à noite para “continuar no dia seguinte”. A expectativa é angustiante. Como será o nosso dia de amanhã? Como se irão nele continuar as coisas deixadas hoje interrompidas? O tempo, e não o discurso, eis o grande protagonista! O ritmo diarístico da telenovela – igual ao ritmo do quotidiano concreto - é por certo um dos factores determinantes do fascínio magnético que a novela televisiva soube redescobrir: a “garra” da vida.
Aquilo que nos faz ansiar pelo dia seguinte e nos vai fazendo adiar a morte.
Nov. 1990
© Pedro Barbosa