ESCREVER COM UM FÓSFORO?
Escrever com um fósforo: porquê?
Porque o fósforo incendeia o papel, e o papel arde, e nada fica? Só a cinza das palavras?
Talvez...
Mas porquê esta metáfora do "fósforo", a que sinto um especial apego inconsciente? Porquê esta associação espontânea, tão impositiva em mim, entre o fósforo e a escrita?
Não porque a escrita arda, pois não é este o caso, vociferando coisas escaldantes e muito menos incendiárias: são papéis velhos que aqui irei postando, escritos dispersos, memórias, relíquias, velharias esquecidas na gavera.
O que eu vejo (ou julgo ver) no fósforo, não é a imagem do fogo ou do fósforo que lança fogo ao papel, é antes a imagem do fósforo apagado, do fósforo que ardeu e que perdeu a serventia. Algo de frágil e de efémero, que se parte e se deita fora, que escana e se desfaz à simples manipulação dos dedos. Do fósforo queimado que risca o papel com o resíduo inflamatório apagado, do fósforo gasto que esborrata letras desiguais, cinza de palavras às quais um simples sopro basta para as fazer voar.
Também não a imagem do fósforo vivo, ainda de cabeça rubra, por arder, em estado de potência inflamatória, mas cujo contacto inerte com o papel, ao contrário do contacto com a lixa, não fará saltar faúlhas, não o inflamará com o fogo das ideias: antes deixará o rasto de uma escrita apagada, cinza de fósforo ardido. Aqui, do fósforo apenas resta a ponta quebradiça, ou então o fósforo partido nos dedos, o fósforo que perdeu o seu poder inflamante mas deixou um rasto escrito de pó vermelho e de esquírolas inúteis - a sua alquimia desardente.
É pois a imagem do fósforo frio que alimenta esta escrita. Ou talvez mais a do fósforo riscado no vento: a volatilidade, a instabilidade, a inutilidade, afinal, do esforço posto em o acender - e reacender.
Mas porquê?
Talvez porque esta escrita casual e repentina brilha efemeramente para logo se apagar: como cada fósforo que é tirado da algibeira e, uma vez riscado, deflagrado, logo é jogado fora. E calcado aos pés. Quotidiano, frio e apagado – inútil.
Outubro 1990
© Pedro Barbosa