Escrita avulsa retirada da gaveta: diarística, textos esparsos, relíquias, memórias, antiguidades, velharias e outras inutilidades.

21
Abr 14

 

 

Encontrei por acaso na internet mais um sentido (aliás bem claro) para o simbolismo de escrever com um “fósforo”. Por acaso!? Na verdade ele veio do escritor que mais iluminou a minha primeira juventude. De Érico Veríssimo: precisamente o autor do esquecido romance «Caminhos Cruzados». Caminhos que se cruzam de novo? Não foi preciso ir ao cartomante nem ao psicanalista… O fósforo como miniatura simbólica do facho imperial: a frágil luz dos pobres e dos deserdados da sorte.

 

 

"Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que o escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto." – Érico Veríssimo

publicado por Pedro Barbosa às 05:11

07
Abr 14

 

 

 

 

 

 

 

 

Reflexão sobre a escrita diarística

 

            Num diário, a escrita está por dentro dos acontecimentos, na narração literária são os acontecimentos que estão por dentro da escrita.

            A escrita diarística está suspensa do tempo, depende dele, é ele que a domina, tal como é a lógica da vida que domina o engendramento dos factos e, por dentro destes, a escrita. A escrita diarística não controla os factos, antes voga ao sabor deles. Toda a expectativa é feita pelo tempo em suspenso, evoluindo de dia para dia, de acordo com uma lógica do real que os engrena e os engendra numa sequência inexoravelmente cronológica sem que o sujeito escrevente, também actor, os possa controlar a bel-prazer, pois está dependente do destino imposto pela máquina externa do real.

            Na escrita ficcional é a linguagem que cria os factos, permanecendo por fora deles: envolve-os, doseia-os, controla-os (eles não são “dados” consumados mas construíveis), toma-lhes o freio do tempo, enreda-os, inverte-os e fá-los derivar por onde os ardis da escrita os decide comandar; o suspense não é externo, é construído sabiamente pelo narrador mediante um doseamento técnico, mais do que propriamente pelo impoder de controlar o tempo e as engrenagens da lógica do real.

            É por este peso referencial que a escrita diarística se demarca claramente da escrita literária ou mesmo da escrita memorialista.

            E é este também o segredo e a sedução da tele-novela. É a lógica sincopada da telenovela que parece sustentar o seu sucesso público: o seu poder espantoso de suspender um país inteiro à mesma hora, dia após dia, ao longo dos meses, advém de ela mesma se ir construindo dia a dia, como um verdadeiro duplo da vida real (um duplo imaginário da vida real). Também aí o tempo é um factor indomável, tal como na vida, onde tudo pára à noite para “continuar no dia seguinte”. A expectativa é angustiante. Como será o nosso dia de amanhã? Como se irão nele continuar as coisas deixadas hoje interrompidas? O tempo, e não o discurso, eis o grande protagonista! O ritmo diarístico da telenovela – igual ao ritmo do quotidiano concreto - é por certo um dos factores determinantes do fascínio magnético que a novela televisiva soube redescobrir: a “garra” da vida.

            Aquilo que nos faz ansiar pelo dia seguinte e nos vai fazendo adiar a morte.

 

Nov. 1990

© Pedro Barbosa

 

publicado por Pedro Barbosa às 20:03

 

 

 

 

ESCREVER COM UM FÓSFORO?

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Escrever com um fósforo: porquê?

Porque o fósforo incendeia o papel, e o papel arde, e nada fica? Só a cinza das palavras?

Talvez...

Mas porquê esta metáfora do "fósforo", a que sinto um especial apego inconsciente? Porquê esta associação espontânea, tão impositiva em mim, entre o fósforo e a escrita?

Não porque a escrita arda, pois não é este o caso, vociferando coisas escaldantes e muito menos incendiárias: são papéis velhos que aqui irei postando, escritos dispersos, memórias, relíquias, velharias esquecidas na gavera. 

O que eu vejo (ou julgo ver) no fósforo, não é a imagem do fogo ou do fósforo que lança fogo ao papel, é antes a imagem do fósforo apagado, do fósforo que ardeu e que perdeu a serventia. Algo de frágil e de efémero, que se parte e se deita fora, que escana e se desfaz à simples manipulação dos dedos. Do fósforo queimado que risca o papel com o resíduo inflamatório apagado, do fósforo gasto que esborrata letras desiguais, cinza de palavras às quais um simples sopro basta para as fazer voar.

Também não a imagem do fósforo vivo, ainda de cabeça rubra, por arder, em estado de potência inflamatória, mas cujo contacto inerte com o papel, ao contrário do contacto com a lixa, não fará saltar faúlhas, não o inflamará com o fogo das ideias: antes deixará o rasto de uma escrita apagada, cinza de fósforo ardido. Aqui, do fósforo apenas resta a ponta quebradiça, ou então o fósforo partido nos dedos, o fósforo que perdeu o seu poder inflamante mas deixou um rasto escrito de pó vermelho e de esquírolas inúteis - a sua alquimia desardente.

É pois a imagem do fósforo frio que alimenta esta escrita. Ou talvez mais a do fósforo riscado no vento: a volatilidade, a instabilidade, a inutilidade, afinal, do esforço posto em o acender - e reacender.

Mas porquê?

Talvez porque esta escrita casual e repentina brilha efemeramente para logo se apagar: como cada fósforo que é tirado da algibeira e, uma vez riscado, deflagrado, logo é jogado fora. E calcado aos pés. Quotidiano, frio e apagado – inútil.

 

Outubro 1990

© Pedro Barbosa 

 

publicado por Pedro Barbosa às 19:52

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